A origem do termo Éden, em hebraico, parece derivar da palavra acade edinu, que deriva do sumério edin. Em todas estas línguas a palavra significa "planície" ou "estepe". No entanto, o Gênesis nos conta que o Éden era uma espécie de jardim das delícias, com os frutos mais variados e suculentos, onde Adão e Eva viviam em felicidade plena, sem envelhecer, ou trabalhar, ou adoecer. O mito nos conta que Deus havia feito este tal acordo com o primeiro homem e a primeira mulher: poderiam viver indefinidamente em seu jardim, sem conhecer a fome e a morte, contanto que jamais comecem do fruto do conhecimento do bem e do mal.
Mas, estranho de se
pensar: seria a ignorância a razão de sua felicidade? Adão e Eva eram imortais,
mas todo animal é imortal, na medida em que não desenvolveu a consciência e,
dessa forma, não sabe que vai morrer. O mito nos conta que eles foram expulsos do
Éden, que "tomaram conhecimento de sua própria nudez", mas não seria
este momento exatamente o grandioso despertar da
consciência humana? O
momento em que souberam que eram um ser a parte, com vontade própria? Quando
compreenderam que eram como qualquer outro animal, exceto pelo fato de que
sabiam que iriam morrer? Neste sentido, a questão da existência não é a morte
em si, que é fato, mas sim o que faremos desta vida, desta angústia quase
insustentável de termos uma alma, algo tão infinitamente belo e
frágil, sem sabermos ao certo o que fazer dela...
Sigmund Freud certa vez
disse que houveram três feridas narcísicas [1] na humanidade que tiveram como
consequência uma mudança significativa na forma como o homem vê a si próprio.
Os três pensadores responsáveis por elas foram Nicolau Copérnico, Charles
Darwin e o próprio Freud. Eu tendo a ver a análise de Freud como a análise de
uma crise da alma humana, mas todas as crises geram admiráveis
oportunidades para a elevação de
nossa consciência, ao
menos para aqueles que tem olhos atentos nas leis da Natureza:
Não estamos no centro
Inspirado
por ideias de manuscritos antigos, Copérnico foi o primeiro cientista
moderno a contrariar a ideia comum de que a Terra estava situada no centro do
Cosmos, e que mesmo o Sol girava em seu redor. Com o heliocentrismo, que foi
posteriormente comprovado por observações de Galileu Galilei, o homem se viu
destituído do centro mítico do universo. Assim como Narciso, que só conseguia
admirar sua própria imagem refletida no lago, o homem antigo acreditava que
habitava a morada central, algum ponto importante do infinito...
Mas, estranho de se
pensar: como pode o infinito ter um centro? Que importa se é a Terra que gira
em torno do Sol, ou o contrário, se hoje sabemos que tudo se encontra
catapultado em direção a tal imensidão, e que
mesmo o nosso Sol é
somente um dentre bilhões de outros sóis? Ainda que a Terra gire em seu torno,
o Sol não está fixado em centro algum, mas viaja pelo Cosmos como um pedaço de
poeira ao vento matinal. No Cosmos, afinal, nada se perde, mas tudo flui, e se
metamorfoseia, se transforma. Somos formados por poeira de estrelas, e nossos
átomos são emprestados do mesmo conjunto de átomos que forma tudo o que há.
Dessa forma, todos os
pontos estão igualados - o centro não existe, mas se encontra espalhado
por todos os lugares.
Não fomos criados
perfeitos
Diz o mito que uma bela
ninfa, chamada Eco, estava perdidamente apaixonada por Narciso. Mas o belíssimo
rapaz, embriagado pelo próprio reflexo, se julgava um deus e, dessa forma,
indigno da afeição de uma mera ninfa... Talvez tenha sido um pensamento
parecido que levou o homem a se julgar um ser superior
em meio a natureza e
aos demais animais. Havia sido criado perfeito, pelo próprio Deus, ainda no
Éden, de onde havia sido expulso por desejar adquirir conhecimentos proibidos.
Isto tudo foi questionado pelateoria de Darwin e Wallace, que postulava que o
homem não havia sido criado como era hoje, mas que veio evoluindo pela árvore
da vida, desde uma simples bactéria, por bilhões de anos, e por milhões de
espécies distintas.
Mas, estranho de se
pensar: como poderia o homem ser uma criação perfeita se, ainda no Éden, havia
muitas coisas que desconhecia? Veja bem: o fruto que comeu, e que causou sua
expulsão do jardim das delícias, trazia não somente o conhecimento do mal, como
do bem. Se o homem não conhecia o mal, tampouco conhecia o bem. Era, dessa
forma, um perfeito ignorante - como vimos, nem mesmo conhecia sua
própria mortalidade.
Hoje sabemos, através
da biologia, que o homem não surgiu do nada, nem tampouco é perfeito, mas que
evoluiu através das adversidades, de sua relação com o meio ambiente a volta.
Darwin disse que através da "guerra da fome e da morte", a evolução
das espécies "tendia a perfeição". Mas a perfeição a que ele se
referia não era uma perfeição final, derradeira, mas um eterno "vir a
ser", um aprendizado sem fim. Não há nada mais sinistro do que a
perfeição, se o próprio universo fosse perfeitamente simétrico desde o início
do espaço-tempo, matéria e anti-matéria teriam se aniquilado mutuamente, e nada
mais haveria do que vácuo e vazio - nenhum lampejo de luz numa escuridão fria,
simétrica. Para nossa sorte, a Natureza nunca foi totalmente perfeita. E,
quem somos nós, senão crianças em constante aprendizado?
Dessa forma, todos
temos de seguir nesta trilha ancestral - a perfeição está no caminho, e
não na chegada.
Não conhecemos sequer
nossa casa
Coube ao próprio Freud
redescobrir o inconsciente humano, aquele mesmo que se mostrava, antigamente, nos
mais variados mitos. Pois que mitos nada mais são do que os fatos da mente
encenados em ficções, histórias que eram passadas adiante pelos contadores e
menestréis... Diz ainda o mito de Narciso que Némesis, a deusa da vingança e da
ética, condenou-o por haver ignorado solenemente o amor da ninfa, que terminou
por definhar em desilusão. Mesmo o próprio Narciso, condenado a contemplar sua
bela face no lago, terminou por definhar e morrer, assim como Eco. Mas, quando
foram buscar seu corpo, encontraram apenas uma flor, a flor da alma que havia
morrido para a beleza do ego, e agora contemplava uma beleza ainda mais
profunda.
Se antes Narciso andava
distraído por sua própria beleza, e não observava o mundo a volta, agora havia
morrido, e renascido. Um belo mito, que demonstra que nem todas as punições
divinas são aquilo que imaginamos a primeira vista. Némesis teve sim compaixão,
mas sobretudo senso de justiça: todos, afinal, precisam reavaliar seus atos,
até que se conheçam verdadeiramente, até que compreendam os meandros e os
monstros de seu próprio inconsciente.
Se Freud encontrou
tantos traumas e tanta escuridão nas mentes mais comuns, é porque a era moderna
carece de seus mitos, de modo que somente alguns poucos conseguem ser, ainda,
psicólogos de si mesmos. Toda a filosofia se encontra aí:
autoconhecimento. A filosofia é a verdadeira autoajuda, e conhecer aos
próprios pensamentos, sem medo, sem culpa, é a única forma de lapidar a alma,
transformar chumbo em ouro, e renascer, como a lótus, em meio ao charco dos
desejos desenfreados - agora, devidamente controlados pela vontade.
Dessa forma, foi
preciso que uma grande crise se abatesse sobre a alma para que percebêssemos o
que somos - hóspedes em nossa própria mente, mas sempre a procura do
Anfitrião.
O despertar
Assim como Narciso,
Adão e Eva despertaram para uma existência própria, e deixaram de contemplar a
Deus - seja indiretamente, pelo amor a própria beleza, seja diretamente, pelo
espanto ante tal imenso jardim. Estavam em crise em meio ao próprio Éden, mas
tal crise lhes trouxe a oportunidade de serem, enfim, seres que possuem
vontade. E assim que puderam, finalmente, escolher por conta própria,
escolheram caminhar a frente, em Sua direção, para não somente contemplar, mas
compreender... E, em compreendendo, tornarem-se nesta Criação, cocriadores!
***
[1] Referência
ao mito de Narciso, que ainda é revisitado ao longo do artigo.
Crédito da imagem:
Robert Recker/Corbis
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente sobre a mensagem acima que você leu